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quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

O líder da manada


Ser a fonte obscura de um talento inexistente deve doer até mais na alma do que no orgulho. Ver uma declaração de amor chegar aos ouvidos de uma mulher na voz de outro homem deve ser excruciante. A verdade é que viver às sombras é tão confortável quanto desagradável.
Ser o elefante eclipsado pelos pares, no meio de uma manada, pode significar a sobrevivência. Mas não seria tão melhor estar à frente, liderando o grupo e tomando as difíceis decisões? O elefante clandestino, ocultado na furiosa correria da manada, talvez se vanglorie de respirar, enquanto os líderes são ceifados pelos caçadores. Ainda assim, ele jamais conseguirá esconder ou evitar a inveja por não ser ouvido nem respeitado. Jamais sepultará o desejo de ser importante no meio em que vive.
Por essa razão, não basta contribuir, não basta fazer a parte que cabe a cada um. Deve-se ter certeza de que o trabalho de cada um é importante, de que o trabalho de cada um é fundamental para que se tenha um projeto construído e funcional. Portanto, não é admissível que se trabalhe às escuras e que se aceite um serviço tendo menor relevância do que outro.
Isso só acontece porque muitos baixam a cabeça quando são minimizados e poucos batem no peito e cobram o devido reconhecimento pela tarefa bem realizada. Não adianta choramingar pelas covas e resmungar pela falta de visão alheia. Não adianta o zagueiro reclamar que salvou o time 10 vezes, enquanto o atacante, que acertou um único chute, sai carregado do estádio. Não adianta o baixista reclamar que as fãs só visitam o camarim do vocalista mimado. É hora de ser revolucionário, subversivo, raçudo.
Rompa, se não reconhecerem seu valor. Rasgue tudo, se você recebe menos do que um burocrata qualquer que só carimba papéis. Jogue tudo pela janela, se não respeitarem o valor de seu trabalho. Se existe uma hora para mudar tudo, essa hora não foi ontem nem será amanhã, essa hora é agora. Portanto, rasgue os papéis, chute a bola para o mato, jogue as baquetas na cara do vocalista e faça valer cada centavo que não foi pago pelo que você fez.
Você, e só você, é capaz de saber o quanto vale seu trabalho, porque só você sabe o quanto sacrificou para fazê-lo. Chegou a hora de empurrar os outros elefantes e tomar a dianteira da manada.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Descaminhos



Caminhar pelas trilhas da vida é um destino inevitável. O caminho abre-se perante nossas vistas e lá vamos nós palmitar cada milímetro de chão que nos separa de nossos sonhos. O problema é que cada um carrega consigo uma tragédia particular e intransferível. Cada um carrega as dores de sua própria cruz e de sua própria coroa de espinhos.
Descobrimos isso quando os descaminhos multiplicam-se como insetos ao redor da lâmpada. Descobrimos quando os descaminhos já não mais nos permitem enxergar o caminho. Descobrimos isso quando as dores eclipsam a saúde transcrita nos laudos médicos.
O que fazer quando esse destino amargo cada vez nos consome com mais fome e avidez? Atirar-se do penhasco, permitir que as moscas acampem em nosso corpo morto em vida? Não, parece que o único e inevitável caminho é continuar a caminhada, com o estoicismo e a obstinação de um Dom Quixote.
O caminho quer sempre ser desafiado e sempre nos desafia com suas obscuras e pérfidas crateras. Os sonhos talvez nunca se materializem, talvez os milagres não estejam no porvir pelo qual rezamos, talvez o caminho nunca tenha fim.
Ainda assim, continuemos a marchar, continuemos a acreditar em nossas próprias forças, continuemos, pois já aprendemos que não é preciso a nobreza de um faraó para alterar a história do Egito.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Fim de linha

Fim de linha para Ronaldo “Fenômeno”. Não sei o que dizer sobre ele. Faltam-me palavras e sobram emoções antagônicas. O heroi de 2002 e o vilão de 98 vestem a mesma fisionomia. O rapaz franzino ganhou músculos vigorosos e os músculos tornaram-se gordura. As dores e as conquistas dividiram as manchetes e os holofotes com igual intensidade. A miséria conformou-se em invejável fortuna. Mas a riqueza não o tornou completo.
Ronaldo queria algo mais e o procurava nesse melancólico fim de carreira. Talvez fosse o brilho que um dia já teve. Talvez fosse a vontade de se firmar, em campo, no país que o forjou e tão cedo o lançou para o mundo. Talvez fosse a inevitável necessidade de se descobrir, de se descobrir além do futebol e da fortuna. Descobrir-se humano e vulnerável. Ronaldo fechou seu ciclo descobrindo que há limites e que não é possível superá-los para sempre.
Descobriu que por trás das cortinas há aplauso e reconhecimento. Há quem reconheça o quanto ele fez de belo com o talento que Deus lhe deu. Ronaldo descobriu que há vida após o futebol e que haverá sempre uma palavra e mil imagens para eternizar sua luta e sua genialidade.

Calcinha bege


         Sim. A calcinha bege. Essa peça é criminosa, marginal, pois me  roubou uma preciosa e promissora noite. Roubou-me uma deliciosa história de sexo e sinestesia.
         Em um furtivo início de madrugada, com uma bela garota loura a tiracolo, aquecemos as turbinas de nossa aeronave transoceânica. Roupas desmaterializaram-se. Desejos tornaram-se mais pesados do que o céu. Seria um nirvana amoroso, com pétalas de paixão e êxtase a sobrevoar a atmosfera.
         Entretanto, quando tudo afunilava para uma explosão inédita de luxúria e pecados, surge a auréola de uma calcinha bege. Algo capaz de exorcizar a mais profana libido, o mais intenso furor. 
        O magnetismo de nossos corpos evaporou-se, um Muro de Berlim edificou-se do vácuo. Nossas bocas e mãos desencontraram-se, nossa insanidade pagã recolheu-se em absurdo casulo de moralidade. Uma real e indeclinável comédia da vida privada. 
         Tornamo-nos incompletos, ausentes de nossa própria essência. Nosso incêndio indomável e selvagem  foi sabotado pela mais providencial tempestade. O céu gargalhou de nosso desastre. No passado bíblico, a maça destruíra a virtude. Dessa vez, só foi preciso uma calcinha bege.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Pai de luvas


Há cinco, seis anos atrás, o compromisso de uma possível paternidade me assustava escandalosamente. Ser pai significaria estar a palmos de distância do inferno ou do Alasca. Com a sucessão dos anos, acumulei dores, aflições, frustrações, amores e algum amadurecimento.
Hoje, do alto dos meus quase 30 anos de existência, sinto-me diferente. Sinto que algo acontece no meu coração. Uma mistura da aflição de não ter uma vida profissional e financeira sólidas com a emoção de sentir que o caminho com as próprias pernas já é real e irreversível.
A sensação de que o menino se transfigurou em homem me vem com os hematomas acumulados pelas decisões erradas que tomei. O soco no queixo que a vida constantemente me dá é sinal de que já sou um pugilista preparado para encarar o ringue e os rounds. É uma luta que está longe do fim, por isso não sei se perderei por pontos ou por nocaute. Mas também sei que posso ganhar, que posso acertar um cruzado ou um gancho e endereçar esse adversário cruel à lona.
E, esse momento em que nos abre um clarão na guarda inimiga depois de sofrermos uma saraivada de golpes, me veio em um momento fortuito. Semana passada, caminhava sossegado pelas ruas do bairro São Mateus, quando vi um rapaz com o filho no colo. A mesma circunstância, anos atrás, provocaria em mim confusão e medo. No entanto, quando vi aquele rapaz com filho, não tremi nem me encolhi. Consegui perfeitamente me exercitar mentalmente, colocando-me no papel de pai. Não houve pavor. Apenas a sensação maravilhosa de que ter um pedacinho de mim a meu lado será encantador.  É evidente que não é um plano imediato. É algo que acontecerá daqui a alguns anos. E será ótimo.
Como poucas vezes em minha vida, percebi a guarda aberta. E investi contra meu oponente com fúria e vontade de viver. Ele assustou-se. Percebeu que agora já não sou aquele combatente medroso que reza pelo gongo. Ele sabe que vou enfrentá-lo. Ele agora sabe que posso vencê-lo. Ele sabe que agora já tenho por quem lutar.