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sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Regra de três



Se for para ir, eu vou com tudo. E até o fim, até o fundo. A conversa aqui jamais é pela metade. Tudo que vivo é no plural e com intensidade. Copo meio cheio, meio vazio? Deixa disso. Eu encho até o topo e esvazio em uma virada. É assim que se brinda e assim que se vive. Sou desses que dão a cara à tapa e que jamais fogem dos desafios. Nem mesmo dos impossíveis. Aceito até um “não”, mas jamais “nunca”. Meu pessimismo termina quando abro os olhos de mais um dia de trabalho. Até porque trabalhar é divirto e eu me viro bem com o que tenho. Minha ambição é ser feliz e não rico. A riqueza que me basta é a de saúde e a de espírito. Vou indo assim: às vezes caminhando, às vezes correndo e sempre sorrindo. Que seja sempre assim. Como o Rio Nilo, como a vida por trás do vidro. Vidros de carros, vidros de janelas, vidros de uma existência enredomada. Como é bom pular por trás da lógica, dos tabus, das convenções. Eu gosto de quebrar paredes, desmoronar preconceitos e ruir juízos. Aliás, juízo que anda em falta, mas não por fazer merda o tempo todo e sim por usá-lo para não fazê-las. É assim que existo: pensando, socando, suando e jogando. A vida é esporte, então precisamos marcar pontos. A vida é uma arte, então devemos representar lindamente. Até mesmo fingir que é dor a dor que deveras sentimos. Ah, esse Pessoa, tão pessoal em minha e em tantas pessoas. Que bom chegarmos até aqui. É meio de caminho? Eu ainda acho tudo tão inicial e enigmático que minha curiosidade se atiça e se atreve a enxergar por baixo do tapete e atrás da cortina. Que males se escondem? Que segredos se disfarçam? Eu não estou nem ligando. Desde que haja um mato para admirar, uma mão para segurar e uma taça para derramar; de resto está tudo certo e tudo belo. A vida e os dias de vida estão aí para serem apreciados e degustados. Como uma boa safra de vinho, como uma esplendorosa poesia. Que saibamos saborear as uvas e letras de todas as horas. Só isso mesmo. Ser feliz é mais simples do que fazer regra de três. É virar a chave e deixar a correia girar. É mudar o chip e para o amor ligar. Bora, então; minha gente, ou é preciso desenhar?  

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Mensageiro do futuro



Vai tomar no cu. Vai se foder. Não tem futuro, caralho. Vocês, com sua ganância e arrogância, destruíram tudo. Não tem mais floresta, não tem mais ar. Para sobreviver nessa merda, a gente tem que usar cilindros de oxigênio, carregar como se fosse uma mochila. E essas porras são caras demais. Só tem quem é rico. Eu sou pobre e fodido. E aí? Como fico? Água? Seus filhos da puta, vocês poluíram todos os rios e todos os mares. Tratar água é um luxo. Água potável custa mais do que petróleo. É servida em banquete de babaca. A gente que é fodido só toma água de torneira e fica torcendo para não passar mal ou ficar doente. Porque, se ficar, ferrou. Hospital não atende quem não tem plano e também não tem mais médico cubano. E se gente for lá reclamar, a polícia chega e mete esculacho. É assim. Tudo para poucos e nada para tantos. Não tem emprego, só subemprego, onde os patrões escolhem quais direitos vão respeitar. Escola? Só se você tiver o voucher, que é limitado e distribuído na base da propina ou do “quem indica”. Se era isso que vocês queriam, parabéns. Deu tudo certo. Os pobres foram exterminados. Só sobrou gente de dinheiro e podre de pensamento. Essa carta vem do futuro, mas poderia vir também da Idade Média. Para quem não tem grana, são realidades muito parecidas. É isso. É o fim. Venceram o darwinismo social e o apartheid religioso. Aplausos para os envolvidos.

Brasil, 31 de dezembro de 2022

A Terra e a Vida



A Terra não é plana. A Vida também não é. Então seriam elas redondas? Prefiro dizer que são profundamente dialéticas. E isso, por si só, já nos impulsiona, nos pressiona e nos transforma. Vale de incentivo para quem está por baixo, desolado, excluído. Isso porque, de giro em giro, a Terra e a Vida podem levar os perdidos a um outro patamar. É a prateleira dos vencedores, dos gloriosos, daqueles que alcançaram o triunfo. Mas isso não vem de graça. É preciso se mobilizar, se esforçar, correr atrás. O mesmo se diz para quem está no privilégio. Por essas voltas e revoltas da existência planetária, o seu lugar também pode mudar. O topo da pirâmide pode não ser um lugar para sempre. Inércia e soberba abalam de morte o todo conquistado; os privilegiados de antes podem se tornar os futuros esquecidos. Antes, o que era luz e flash pode ser em pouco tempo apenas penumbra e frio. É assim que funciona. A Vida e Terra são uma gigante gangorra. Elas viram e reviram certezas, verdades e crenças. Entre a tese e síntese, passando pela antítese, muito pode acontecer e tudo vai mudar. Podem ter convicção disso. Mesmo sem as provas. E, no fim, o que era para ser lavado, se tornou vazado; o que era para ser o certo, se tornou o errado. Hegel não era apenas um filósofo, ele era, muito antes disso, um profeta, um apóstolo. O que ele escreveu foi a mais universal das leis. “Nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia”, é um lindo verso que parafraseia versículos dialéticos. E fica a lição: a Terra não é plana e a Vida não é quadrada, mesmo mudando para algo que não é mais como antes, elas se tornam figuras geométricas de alguns ângulos cada vez menos retos. Ainda sobre elas, muito vale o que nos ensinou muito sabiamente Tales de Mileto: “todas as coisas, incluso as inanimadas, estão cheias de vida”. A realidade respira e o trem volta para a estação, mas diferente, porque diferentes são os passageiros de cada viagem. “É pau, é a pedra, é o fim do caminho. É um resto de toco, é um pouco sozinho. É um caco de vidro, é a vida, é o sol. É uma noite, é a morte, é um laço, é o anzol.” É tudo e nada, passando pelo todo. Sim. Tom Jobim foi mais um dialético, mais um maluco das incertezas cilíndricas e das letras orbiculares. Talvez ele já saiba o quanto estamos fodidos. Mas que pelo menos saibamos que em tudo há Vida e que tudo volta, primeiro como tragédia e depois como farsa. Ou seja, não há zona de conforto nem mesmo para quem se acha acima do bem e do mal, além do corpo achatadamente celestial. É a Vida que nos ensina que a Terra pode até ser muito mais complexa do que surfistas caindo no abismo do horizonte, do que plantações de maconha em câmpus universitários ou do que canções dos Beatles doutrinando novos comunistas.



terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Querubim



Parecia até um enredo de comédia romântica, mas era vida real. Minha vida, aliás. A mocinha, linda e plena, conhece um rapaz tímido, mas do bem. E aí eles se envolvem em um arco elétrico, tântrico e único. Apaixonam-se e fazem juras. Só que toda comédia romântica que se preze oferece um anticlímax. Alguém para ameaçar a harmonia do casal feliz. E esse alguém era uma pessoa indeclinável. Bonito, jovem, bem-sucedido. Um cara do esporte e que pratica benevolência. Um cara atlético, mas também muito culto. Um querubim com o corpo de uma divindade grega. Como competir com esse cara? Com entrar no campo de jogo para desafiá-lo? Ele riria e a puxaria pelas mãos me deixando sozinho e desolado. E assim foi, só que não desse jeito. Ele, educado e respeitador, foi conversando aos poucos, sem muito interesse. Mas depois foi do interesse para o flerte e do flerte para os lençóis. E nessa história quem acabou tomando o maior lençol fui eu. Tive que vê-la se mudando para a cidade dele, vivendo para com ele ficar. E eu fiquei sozinho, perturbado, angustiado. Ela não responde mais minhas mensagens, não me segue em rede social e ainda me bloqueou em todos canais. E agora, como faço, como me viro? Eu não tive essa resposta por um bom tempo, coisa de meses, até que o telefone tocou. Primeiro, sem voz, apenas uma respiração frágil e trêmula. Depois, as primeiras palavras vieram e, por fim, um convite para um encontro fortuito. Do fortuito, fomos para a paixão resgatada dos recônditos da saudade. Novas lágrimas, novos orgasmos, novas dúvidas. Com quem ela vai ficar? Quem ela quer, afinal? O jogo virou para mim ou perdi de goleada? Quer saber? Nem me importo mais. A vitória para mim é poder tê-la, mesmo disputando contra o time mais forte que já enfrentei. Se eu perder, vai ser de peito aberto, atacando o tempo todo. Mesmo que prevaleça a lógica das casas de apostas e de quem já entrou em campo com o todo o favoritismo a seu lado. Ainda assim, ficarei de cabeça erguida e muito vivo. Afinal, a vida não precisa ser sempre uma comédia romântica, mesmo que às vezes, insistentemente, assim queira ser.



Malditos felinos



Eu sempre fiz caretas para os gatos. Acho que são criaturas narcisistas, egoístas e extremamente indiferentes. A única vez na vida em que tive gato terminou mal, e rápido. O danado fugiu de casa sem dar pistas ou deixar rastros. Depois disso, só abrimos nossas portas para cães. E vieram muitos: Lady, Pamela, Kita, Raisha, Jeremias e, por fim, Furiosa. Todos bichos muito singulares entre si, mas bastante amáveis e zelosos. E assim minha vida se desenhou canina e muito feliz. Recentemente, porém, tive a chance de conhecer melhor dois bichinhos muito especiais. Jack e Zog (na verdade é Zig, mas eu chamo de Zog porque eu gostei do nome e para irritar a mãe dele, claro). Jack é um bebê ainda, mas muito arisco e ousado. Ele, mesmo bem vigiado, se pendura em beirais, faz estripulias e se aventura nas cobertas e varandas dos prédios vizinhos. Praticamente um ginasta peludo ou então um adepto do parkour. O Zog é outro esquema. É criado bem solto, com a porta de casa entreaberta para sair e voltar quando quiser. Ele passa noites fora e dias inteiros sonecando na superfície de um sofá bem macio. É manhoso e agarrado com a mãe, como não costumam ser esses bigodudos. Quase um cachorro que mia, como bem define sua cuidadora. Demorei para  me permitir. Mas esses felinos me ganharam. Primeiro, com alguns miados tímidos. Depois, com a ousadia de quem me sobe os ombros como se papagaio fosse. Ainda prefiro os cães, mas sem dúvidas o Jack e o Zog me fizeram olhar para esses bichinhos um pouco menos desconfiado e bem mais apaixonado. Eles venceram, enfim. Malditos felinos.


Segundo sol



Dizem que o astro-rei é único e soberano. Aquela estrela dourada e fulgorosa que aquece nossos dias é insubstituível e inabalável. Pode até ser. Também se diz que a virgindade só se perde uma vez. A experiência da primeira sexualidade e o rito de passagem só podem ser vivenciados em uma única oportunidade. Não é mentira. Mas podemos questionar essas duas verdades: tanto a existência de um único sol, como também a vivência de apenas uma virgindade quebrada. A astronomia, em breve, pode descobrir sim a presença de um novo corpo solar. E as pessoas podem sim redescobrir uma virgindade e perdê-la novamente. Já aconteceu comigo, tanto como sendo revirginado quanto como estando com alguém nessa condição. Explico-me. Fui noivo anos atrás e, depois do rompimento, me isolei e fiquei por mais de sete meses sem sexo. Quando aconteceu, foi como um furacão. Conheci uma pessoa legal em uma balada, nos seduzimos e nos permitimos uma noite de luxúria. Para ela, talvez eu fosse só mais um. Mas para mim ela foi um momento incrível e especial. Lembro muito bem de todos os detalhes. Foi uma nova virgindade que se desfez. Como também foram desfeitas minhas inseguranças e medos de um neófito nas questões da intimidade. Depois disso, minha rotina sexual voltou ao normal. Porém, tempos recentes me levaram a conhecer uma mulher muito interessante. Ela, recém-separada, vinha com todos os ressentimentos e desconfianças de quem encerrou uma relação longa e complicada. Falamos muito disso. Só que, além das conversas, também tivemos vontades sexuais, lascivas, voluptuosas. Também falamos disso e resolvemos nos permitir um mergulho por entre as linhas de nossas intimidades. Não sem antes conversar de novo. E aí ela me disse que se sentia revirginada, assim como aconteceu comigo antes. Eu tentei ser o mais empático possível. E tudo aconteceu maravilhosamente. Um alívio de ambas as partes. Da dela, por finalmente voltar ao jogo sexual. Da minha, por ter conduzido tudo da melhor forma, sem criar novos traumas ou neuras. Agora, estamos bem. Conversamos, de vez em quando nos vemos, sem muito peso ou cobrança. E assim segue a vida. Sempre nos permitindo novas descobertas, seja ela um sol inesperado ou uma virgindade que volta à porta como se nunca tivesse deixado de existir. Seja como for, estejamos preparados e de braços abertos às oportunidades que a vida, por vezes; maliciosamente, nos traz.