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terça-feira, 4 de setembro de 2012

Baixa paixão


Com o baixo no colo, ele disparou alguns acordes e moveu a cabeça bem lentamente, extasiado pela música que ouvia mais em seus pensamentos do que em seu quarto. Suzana apenas olhou um tanto entediada, pois já havia assistido àquela cena exaustivamente. Era como estar em um show de mágica pela enésima vez consecutiva.

- Bem, vamos sair deste quarto. Lá fora tem muita coisa legal rolando.

Ele a olhou com um rancor que parecia moldar uma máscara pavorosa em seu rosto. Se fosse um cão, rosnaria como se alguém tentasse tirar-lhe a comida.

- Sabe que você é muito mal humorado para quem se diz músico? Além disso, faz tanto tempo que isso não te dá dinheiro. Nunca pensou em deixar de lado, tentar outra coisa?

Aquelas palavras torturavam o coração do rapaz. A música em sua vida era uma combinação de furiosa paixão e prazer. Tocava aquele instrumento como quem toma a amada nos braços e a traz para um valsar emoldurado por uma noite de lua cintilante e refrescado orvalho. Era algo de imenso bucolismo, uma preciosidade que jamais deveria ser profanada por palavras tão cruas.

- Suzana, - disse ele passando a mão pelo rosto como quem procura o fiapo de uma já inexistente paciência - é mais fácil largar você do que a minha arte. Então, cuidado com o que deseja. Quanto ao mundo lá fora, eu posso dizer que estou bem aqui. Se quiser ir, vá. A porta não tá trancada.  

A namorada rebaixou o olhar. Era difícil entrar na concha do rapaz. Ele se fechava ainda mais com o acúmulo de fracassos e frustrações. Parecia ter pedras e paus nas mãos para cada crítica realista ou construtiva.

- É difícil desse jeito, sabia? Você sempre vem com tudo quando a gente tenta dizer alguma coisa. A vida é complicada, mas tem que enfrentar. Não dá pra ficar o tempo todo na defensiva, como se tudo estivesse bem lá fora.

- Esse é o seu problema. Você esquenta demais a cabeça com o “lá fora”. Com a mão pousada sobre o peito, concluiu: - O que se passa aqui dentro é muito mais importante. A nossa vida se resolve é desse lado.

Exasperada, ela rebateu: - A vida se resolve é de todos os lados. Você acha que vai conseguir ficar pra sempre na sua bolha de indiferença? Acorda, tá? Não dá pra ficar pra sempre abraçado com esse violãozinho.

Foi preciso que o rapaz contasse até 20 para não explodir em um arroubo de impropérios e ofensas: - Não é violãozinho, é um baixo. E não é um baixo qualquer. O nome dele é Kevin e é assim que você deve chamar. Eu não chamo o seu vira-lata de cachorro, eu chamo pelo nome que você deu a ele.

Suzana não aguentou: - Vai tomar no cu, seu filho da puta adolescente. Você não pode comparar o Steve, que é um ser vivo, com uma porcaria de instrumento. Essa merda você pode quebrar, jogar fora e pegar um novo depois. Quer saber? Vê se cresce, Peter Pan. Quando fizer 18 anos, aí você me liga de novo, tá? Em seguida, ela saiu acompanhada de uma violenta batida de porta.

O rapaz balançou a cabeça de maneira negativa e voltou-se ao baixo, apertando o instrumento contra o peito ainda mais forte. Os olhos se fecharam por completo e os dedos deslizaram pelas cordas, fazendo nascer um som gutural e arraigado. Era como um grito que une voz e melodia de uma maneira que só a genialidade da emoção é capaz produzir.

Um comentário:

  1. O texto está bacana, eu concordo com atitude da namorada...Quem quer criança que va brincar no parquinho ou adotar uma para ela.Homem tem que ser homem sempre.

    Problemas todos temos e só ter fé e vontade de resolver.

    Beijos RL

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