Hoje é dia de abrir meu baú, de redescobrir coisas escritas anos atrás. Começo com um pedaço, isso mesmo, um pedaço de um roteiro que comecei a produzir com meu irmão Davi. É uma série sobre mortos-vivos. Nenhuma novidade, né? Bom, nesse caso a novidade é que começamos a trabalhar nisso muito antes de Walking Dead existir. Bebíamos da água de Resident Evil, claro que falo do game e não das porcarias de filmes que a franquia gerou. Imaginamos um cenário paradisíaco, mas cheio de mistérios que iriam revelar sinistra aparição dos canibais moribundos. O nome é Mortos porque tínhamos a pretensão de responder a pergunta que sempre surge em um enredo de zumbis: esses caras estão mortos ou vivos? Mortos, muito mortos, respondemos com esse título bem presunçoso. Sei que muita coisa ainda deveria ser aprimorada, enriquecida, mas valeu a pena o exercício. Eis, então, as primeiras páginas de Mortos. Tenho certeza de que ninguém ficará com medinho (buuuuuu):
MORTOS (DEAD)
Autores/roteiristas: Davi Macário e Daniel Macário
Sinopse: Cinco amigos vão acampar em Chácara (pequena
cidade do interior de Minas) e, chegando lá, descobrem que moradores do local
estão sendo contaminados por um estranho vírus que os transforma em
mortos-vivos. Desesperados, resta-lhes agora sobreviver a tudo isso e tentar
reencontrar o caminho de casa antes que seja tarde demais.
Personagens (1ª Temporada):
Edu: Loiro, olhos castanhos, não muito alto e ligeiramente
atlético. Tem 25 anos, é solteiro e possui fama de mulherengo. Gosta muito de
acampamentos e tem experiência em caça e pesca. Seu pai, um proeminente
fazendeiro, o obrigava a executar animais durante caçadas pela zona rural e
isso fez com que ele guardasse profundos conflitos acerca da figura paterna É
universitário e está no terceiro período do curso de administração. Na escola,
era aficionado por biologia e química, isso permitirá a ele entender mais
rápido do que os demais como funciona o mecanismo de contágio e como o vírus
afeta o organismo das pessoas infectadas. Em termos religiosos, é católico não
praticamente. Carrega em si profundos valores éticos e afetivos, o que lhe
trará grandes choques psicológicos quando tiver que executar pessoas que
conhece ou crianças e mulheres. Por outro lado, a luta pela sobrevivência fará
aflorar em Edu uma visão estratégica aguda, permitindo-lhe encontrar os atalhos
para escapar dos perigos que os cercarão permanentemente.
Cabeça: Negro, forte, tem por volta de 1,80 m. Usa cabelo
raspado e carrega inúmeros anéis nos dedos, além uma corrente de ouro no
pescoço. É fã de rap e hip-hop, saindo-se muito bem quando dança embalado por
esses ritmos. É considerado o maconheiro da turma, sempre carregando consigo
trouxinhas e papelotes do alucinógeno. Cresceu nos subúrbios, tendo já se
envolvido com o tráfico de drogas e com gangues. Graças a um esforço hercúleo
de sua mãe, conseguiu sair do crime e voltar à escola, tendo terminado o Ensino
Médio. Essa vida bandida lhe trouxe experiência com o manuseio de armas de fogo
e com a luta pela sobrevivência, moldando-o para enfrentar os mortos-vivos com
desenvoltura e frieza sobre-humanas. Nutre o sonho de entrar para as Forças
Armadas, cumprindo promessa feita no leito de morte do pai que queria ver o filho
servindo o país e sendo respeitado por todos. Não tem religião, mas acredita em
Deus. Por ser jovem (tem 22 anos), coleciona namoradas e não tem relacionamento
sério.
Ricardo: É alto (1,85 m), tem cabelos negros e pele
branca. Apresenta algumas feições árabes suaves, pois descende de libaneses. Um
pouco mais velho que os demais amigos (tem 28 anos), é ponderado e sempre se
preocupa com o bem-estar do grupo. Tem uma namorada de muitos anos e um diploma
de cineasta. Não tem religião definida, mas é a favor da eutanásia e do aborto.
É ainda fã de Michael Moore e odeia Hollywood. Em momentos de adversidade,
mostra-se um beberrão contumaz. Seu passado como escoteiro se torna útil ao
grupo quando a epidemia viral estoura em Chácara.
Guedes: É magro, tem estatura mediana (1,75 m ) e cultiva uma vasta
cabeleira castanha clara. Possui uma tatuagem no braço esquerdo e os dentes
levemente amarelados pelo fumo excessivo. Com o Ensino Médio concluído, foi
trabalhar em uma concessionária de automóveis. Muito persuasivo e carreirista,
subiu na empresa e se tornou gerente aos 26 anos. Mantém há tempos o perigoso
prazer de dirigir sempre em alta velocidade. Esta habilidade lhe garantirá
importantes pontos quando a contaminação afetar a população local. É ateu e de
um caráter excessivamente individualista e anti-ético. No campo da ação, é
medroso e tem dificuldade em usar armas.
Serginho: É o boa-praça do grupo. Moreno, alto e atlético.
Tem 27 anos. Sabe nadar bem e tem ótimo senso de direção. Com facilidade,
consegue a amizade de todos no acampamento. Conhece como poucos o interior de
Chácara. Trabalha em uma agência de turismo e não tem namorada. Embora não
tenha religião definida, gosta muito das filosofias orientais.
Burton: É um obeso caminhoneiro de 29 anos. Traja usualmente
um boné vermelho, calça jeans surrada e uma camiseta branca amarrotada. A barba
por fazer e fisionomia cansada indicam que já estava dirigindo a longo tempo,
antes de chegar a Chácara. Integra-se ao grupo já no perímetro urbano, quando
todos estão tentando fugir dos infectados. Carrega sempre uma arma na cintura
para se defender de assaltantes na estrada. Além da arma, porta também uma
pequena garrafa com bebida destilada e um crucifixo. Por enfrentar muitos
perigosos em seu cotidiano, não se surpreende tanto com a situação de
adversidade que toma conta da cidade. É corajoso e estabelece relação de grande
afinidade com Edu e Cabeça.
1º Episódio:
SEQÜÊNCIA 1 – SALA DE AULA – INTERNA - DIA
É um ambiente amplo e arejado, com carteiras confortáveis
e bem distribuídas pelo espaço. A sala é equipada com diversos recursos
didáticos tais como projetores multimídia, lousa branca digital, TV, DVD e um
potente microcomputador. O professor, vestido com calça e camisa sociais,
comenta o resultado de um teste aplicado anteriormente. Enquanto isso Edu
conversa em voz baixa com Camila, uma bonita morena de 21 anos.
EDU (EM VOZ BAIXA E INCLINANDO O CORPO NA DIREÇÃO DE
CAMILA): Camilinha, o que você acha da gente sair mais tarde?
CAMILA (EM VOZ BAIXA E INCLINADA PARA EDU): Não sei. Eu
não fui bem nessa prova. Não tenho motivos pra comemorar.
EDU: Então a gente podia afogar as mágoas. (TOM) Eu também
afundei nessa prova.
CAMILA: Ah, não sei se tô com cabeça pra isso não. Tô
muito chateada, sabe? Me sentindo uma burra.
EDU: Camila, a vida não é só aula, prova, faculdade. Tudo
bem, as coisas podem não ter dado certo, mas não é o fim da linha. Existem
coisas mais importantes. Você sabe disso.
CAMILA: É, você tem razão. Mas eu queria tanto ter ido bem
nessa prova.
EDU: Não devia se preocupar tanto com isso. Amanhã, sei
lá, o mundo pode acabar, as calotas polares podem derreter, um meteoro pode
cair na Terra. E aí, todo esse nosso universo estudantil deixa de ter
significado. Entende? Temos que viver intensamente. Amar, lutar, vencer,
perder, tentar de novo. Enfim, seguir em frente e deixar o que ficou pra trás.
CAMILA: Você tá dizendo tudo isso só pra sair comigo?
EDU (RINDO): Também. Mas eu realmente acredito nisso tudo.
Pra mim, o melhor da vida é sempre o hoje, o agora.
CAMILA (SORRI): Tudo bem, Edu. Pode ser que a gente saia
hoje.
(COCHICHANDO PARA
SI MESMO): Obrigado, Senhor.
SEQÜÊNCIA 2 – CORREDOR DA FACULDADE – INTERNA – DIA
Trata-se de um prédio moderno e bonito. As paredes são de
um azul muito claro e em alguns pontos existem murais com diversas informações
para os acadêmicos. Algumas seqüências de assentos estão espalhadas ao longo do
corredor. Em uma delas, Edu está sentado conversando com Fred, o qual se
encontra em pé, apoiado na parede com uma das mãos. Fred é um estudante nerd:
de óculos, calça social e camisa xadrez. A câmera aborda a cena por cima,
mostrando o vai-e-vem de pessoas, depois se aproxima dos personagens até
enquadrá-los em um plano médio.
FRED (RINDO): Pô, Edu. Vai sair com a Camila? Tá podendo,
hein, cara?
EDU: É, cara. Acho que vai rolar mesmo. Eu tô na cola
dessa menina faz tempo.
FRED: E a provas? Mandou bem? Eu consegui passar, graças a
Deus.
EDU: Fiquei agarrado em uma disciplina. Fazer o que, né?
Agora é estudar dobrado no próximo período.
FRED: E quanto às férias? Já planejou alguma coisa?
EDU: Eu devo ir amanhã pra Chácara. Vou tirar o
fim-de-semana pra descansar a cabeça. Na volta, eu vejo se rola uma viagem mais
longa. E você, cara? Aposto que já preparou tudo.
FRED: Ah, você me conhece. Eu vou pra uma feira de
informática e jogos eletrônicos que vai rolar no Rio. Depois, fico por lá,
curtindo a praia, a mulherada.
EDU: Maravilha, cara. (OLHA PARA O RELÓGIO) Porra. Já tô
no atraso. Deixa eu ir que tenho muita coisa pra resolver (CUMPRIMENTA FRED E
SAI DE CENA).
SEQÜÊNCIA 3 – CASA DO EDU – INTERNA- DIA
A cena de desenvolve na sala da casa de Edu. No espaço,
existe uma estante com objetos de decoração e, no centro dela, está uma enorme
TV conectada a um DVD. Há também um luxuoso sofá de frente para a estante. Em
um dos cantos, há uma mesinha com jornais do dia e algumas revistas.
EDU (ENTRA EM CENA. APARENTA ESTAR CANSADO. O TELEFONE
CELULAR TOCA E EDU ATENDE, APÓS UM BREVE SUSPIRO): Alô?
VOZ DE SERGINHO AO TELEFONE: Fala, Eduzão. E aí, rapá?
Beleza?
EDU: Tudo tranqüilo, cara. O que cê manda?
SERGINHO: Porra, cara. Tô ligando pra saber se a gente vai
mesmo pra Chácara. Lembra que a gente combinou?
EDU: Lembro sim. (TOM) Merda, cara. Não consegui deixar
tudo no esquema. Tive uma semana de provas muito foda lá na faculdade. Aí já
viu, né?
SERGINHO: Pois é, cara. Mas o lance tá de pé ainda? É como
eu falei, vai dar mulher pra caramba. A gente não pode deixar de ir.
EDU: Lógico, cara. Tá confirmado. Já vou começar a arrumar
as minhas coisas pra gente ir amanhã cedo.
SERGINHO: E o resto da galera? O Ricardo, o Cabeça, aquele
mala sem alça do Guedes. Você vai chamar?
EDU: Claro, eu falo com a rapaziada. Pode deixar que
amanhã tá todo mundo lá.
SERGINHO: Beleza. Então a gente se encontra lá na área de
camping, perto da cachoeira. Você lembra onde fica, né?
EDU: Lembro, claro. Amanhã, com certeza estaremos lá.
SERGINHO: Fechado, então. Grande abraço, velho.
EDU: Abraço, cara (DESLIGA O CELULAR).
Após conversar com Serginho, Edu se joga no sofá e fica
deitado por algum tempo pensando. Logo, fica com sono e adormece.
SEQÜÊNCIA 4 – MATA DO SONHO DE EDU – EXTERNA – DIA
Trata-se de uma mata densa, com pouca distância entre
árvores, galhos e arbustos. A câmera vem atravessando a mata até enquadrar frontalmente
Edu e o seu pai, Hélio. Edu, em seu princípio de adolescência, e Hélio estão na
mata caçando. Ambos estão armados com espingardas. A dupla está de botas,
calças jeans e camisas escuras. Hélio traja ainda um colete de caça com
cartucheira por cima da camisa.
PAI: Edu, assim que ver alguma coisa, atire. Como eu te
mostrei.
EDU: Tá bom, papai.
Alguns instantes depois, alguma coisa passa correndo entre
os arbustos e árvores. A câmera adota o ponto de vista da criatura. Edu e Hélio
correm atrás dela. A caçada dura algum tempo, em uma cena com suspense e
adrenalina. Por fim, Edu e o Pai encurralam a coisa. Trata-se de um cervo. Ele
está assustado. Close nos olhos apavorados do animal alternados com close nos
olhos tensos e indecisos de Edu.
PAI (AOS BERROS): Vamos, Edu. Atire, atire. Como eu te
ensinei.
EDU (MUITO TENSO. SEGURA A ARMA APONTADA PARA O ANIMAL,
MAS NÃO ATIRA.).
A cena segue tensa. Novo close no olhar de Edu. Sobe sonoplastia de batimentos cardíacos
que segue até o fim. Sobe som também dos gritos do Hélio. As duas linhas de som
seguem simultâneas. A ação agora passa a transcorrer em slow motion. De
repente, o toque do celular de Edu interrompe a cena abruptamente.
SEQÜÊNCIA 5 – APARTAMENTO DE EDU – INTERNA - NOITE
Edu acorda assustado com o toque do aparelho. Ao pegá-lo,
se atrapalha, quase permitindo sua queda. Depois, atende ainda muito agitado.
EDU: Alô, Camila?
VOZ DE CAMILA: Oi, Edu? E aí? A gente vai ou não sair?
EDU (SORRI DE FORMA SACANA): Lembrou do que eu disse sobre
viver intensamente, né?
SEQÜÊNCIA 6 – BARZINHO – INTERNA – NOITE
Edu e Camila estão sentados com tulipas de chope em uma
das concorridas mesas do bar. Trata-se de um ambiente moderno e luxuoso. A
iluminação não é muito forte, de um tom alaranjado, causando a sensação de
privacidade e conforto. As mesas, cadeiras, balcão e armários com bebidas são
feitos de uma madeira bonita e vistosa. Há ainda enorme um telão na parte
central da casa com clipes e filmes, podendo ser visto de qualquer ponto. Há
muitos casais e grupos de amigos no local.
CAMILA: Quando eu liguei, você atendeu tão agitado.
Atrapalhei alguma coisa?
EDU: Não. É que eu estava cochilando e então o celular
tocou.
CAMILA: Sonhava com alguma coisa boa?
EDU: Não. É um sonho que eu tenho com muita freqüência. Trauma
de infância. Mas podemos falar de coisas mais agradáveis (ACARICIA A MÃO DE
CAMILA).
CAMILA: Parece então que seremos parceiros de dependência
no próximo período.
EDU: Achei que a gente ia falar de coisas agradáveis.
(APROXIMA-SE DE CAMILA) Não tem problema. Pelo menos você vai estar lá.
CAMILA: É, seu assanhado. Mas desta vez vou ter que
estudar pra valer. Não posso repetir essa disciplina de novo.
EDU: Não esquenta com isso. Nós vamos estudar muito. Claro
que entre uma página e outra, uns beijinhos não cairiam nada mal.
CAMILA (DÁ UM SELINHO EM EDU): É. Mas teremos pela frente
muito mais páginas do que beijos.
EDU: Você me beijou? Já ganhei meu dia. (TOM) Não pode
rolar mais um, não?
CAMILA (BEIJA EDU, DESSA VEZ DE LÍNGUA. UM BEIJO INTENSO
QUE DURA ALGUM TEMPO).
EDU: Nó, agora fiquei sem fôlego. Pode rolar mais um?
CAMILA (BEIJA EDU NOVAMENTE. UM BEIJO AINDA MAIS
VOLUPTUOSO).
EDU (FALANDO BAIXINHO, NO OUVIDO DE CAMILA): A gente podia
continuar isso em outro lugar.
SEQÜÊNCIA 7 – QUARTO DE MOTEL – NOITE – INTERNA
Edu e Camila estão nus, se beijando. Os corpos estão
parcialmente protegidos pela coberta. A cena é tórrida e envolve muitos beijos
quentes e uma simulação suave de uma relação sexual.
SEQÜÊNCIA 8 – AMANHECER – EXTERNA - DIA
Takes com imagens do amanhecer entre os aranha-céus.
Trata-se de um lindo dia de sol, com ruas movimentadas e pessoas bonitas
vestidas com roupas leves.
SEQÜÊNCIA 9 – PORTARIA DO PRÉDIO DO EDU – EXTERNA – DIA
Câmera foca um carro que chega e estaciona perto do
edifício. Trata-se de uma vistosa caminhonete preta. Na carroceria do automóvel
estão duas mochilas, uma barraca de acampamento e os demais equipamentos. Cabeça
desce do carro. Está de óculos escuros, camiseta, bermuda e tênis sem meias.
Ele atravessa a rua movimentada e alcança a calçada do prédio de Edu. Passam
por ele duas bonitas garotas com as quais troca olhares.
CABEÇA (ESFREGANGO AS MÃOS, EMPOLGADO): Hoje o dia promete
(ASSIM QUE CHEGA À PORTARIA DO PRÉDIO, TOCA
O INTERFONE)
EDU (ATENDENDO AO INTERFONE COM A VOZ CANSADA): Fala,
Negão. O que cê manda?
CABEÇA: Pára de enrolar e vamo nessa. Já tô na pilha e
pronto pra ação.
EDU: Tô descendo. Valeu.
EDU: Qual é, Negão? Preparado pra conhecer os encantos de
Chácara?
CABEÇA: Pode crer que eu estou. Mas esse lugar é legal
assim como cês falam?
EDU: Porra, cara. É maravilhoso. O camping é super limpo e
bem cuidado. Cada um já tem uma área reserva pra sua barraca e a galera que
costuma ir é muito gente boa. De um lado, tem uma cachoeira ótima. Do outro,
uma mata fechada com muito verde, ar puro, animais exóticos. De quebra, ainda
tem um quiosque pra gente tomar aquele gelo.
CABEÇA: Então pra virar o paraíso só falta uma coisa.
EDU (RINDO): Não falta não, meu irmão. O lugar é cheio de
mulher. Com certeza, você vai tirar o atraso lá. Pelo menos o seu, porque o meu
eu tirei ontem mesmo.
CABEÇA (BATE NA MÃO DE EDU): Boa, moleque. E foi com quem?
EDU: Com a Camilinha, uma gatinha lá da faculdade. Você
tem que ver o que ela faz entre quatro paredes.
CABEÇA: Porra, irmão. Você se deu bem nessa. Mas, mudando
um pouco de assunto, e o resto do pessoal? Eles não vão com a gente?
EDU: Não, cara. O Serginho já está lá montando a barraca
dele e armando a churrasqueira...
CABEÇA: Churrasco? Pô, isso tá ficando cada vez melhor.
EDU: Pois é, cara. Já o Guedes vai direto do trabalho pra
lá. O Ricardo vai pegar uma carona com ele.
CABEÇA: Bom, se tudo já tá resolvido, vamo nessa.
EDU: Tudo resolvido mesmo, espertão? Então vamos conferir.
Você trouxe bolsa térmica?
CABEÇA: Sim.
EDU:
Isolante térmico?
CABEÇA: Positivo.
EDU: Lanterna e fogareiro?
CABEÇA (IMPACIENTE): Sim. Porra, cara. Eu trouxe tudo.
Conferi tudo lá em casa, item por item.
EDU: Então porque você tá me olhando com essa cara de
bunda? Demorô. Vambora (JOGA A MOCHILA NA CARROCERIA E ENTRA NO CARRO PELA
PORTA DO CARONA).
CABEÇA (SOBE NO CARRO. DEPOIS, LIGA O AUTOMÓVEL E ARRANCA
CANTANDO PNEU. NA SEQÜÊNCIA, ACIONA O SOM DO CARRO. SOBE UM HIP-HOP DO MOMENTO.
ENTRA CLIPE DE IMAGEM DOS DOIS DANÇANDO E CANTANDO AO LONGO DA VIAGEM).
SEQÜÊNCIA 10 – VIAGEM DE CARRO – EXTERNA – DIA
Takes com imagens áreas e panorâmicas do carro de Cabeça
indo para Chácara. Destaque para a paisagem que vai passando do urbano para o
rural.
SEQÜÊNCIA 11 – CENTRO DE CHÁCARA – EXTERNA – DIA
Um vectra cinza para no centro de Chácara. O cenário é de
uma cidade pouco movimentada, com algumas pessoas indo e vindo. As construções
são todas simples, excetuando-se uma área com algumas casas mais nobres e os
prédios públicos. Na praça, alguns brinquedos com crianças se divertindo e mães
sentadas observando. Guedes e Ricardo saem do carro. Guedes está fumando um
cigarro. Os moradores os olham desconfiados.
GUEDES (JOGA O CIGARRO NO CHÃO E PISA EM CIMA): Nossa, que
fim de mundo é isso aqui.
RICARDO (APROXIMA-SE DE UM SENHOR DE MEIA-IDADE QUE ESTÁ
NA PRAÇA): Com licença, o senhor poderia me dizer qual é o caminho para chegar
à cachoeira?
SENHOR (ASSUSTADO, SE AFASTA DE RICARDO, EVITANDO-O).
GUEDES (APROXIMA-SE DE UMA DAS MÃES, MAS A MULHER RECOLHE
A CRIANÇA NOS BRAÇOS E ESQUIVA-SE DE GUEDES).
RICARDO (TENTA CONTATO COM OUTRO HOMEM QUE TAMBÉM O EVITA)
DEMAIS MORADORES (AFASTAM-SE DOS FORASTEIROS, MOSTRANDO
QUE NÃO QUEREM CONTATO).
GUEDES: Pô, cara. Hoje tá difícil. Só tem bicho do mato
aqui.
RICARDO: Bom, em uma cidade como essa, só uma pessoa ficaria
feliz de nos ver.
GUEDES: Quem?
RICARDO: O dono do boteco.
SEQÜÊNCIA 12 – BOTECO – INTERNA – DIA
É um boteco rústico e simples. Alguns poucos homens
simples e mal-vestidos papeiam e tomam doses de cachaça. No balcão, Burton, um
homem de boné vermelho, calça jeans surrada e camiseta branca toma um copo de
cerveja. Ricardo e Guedes se dirigem ao dono do estabelecimento. Trata-se de um
homem magro, com feições orientais e de meia-idade.
RICARDO: Por favor, amigo. O senhor poderia nos dar uma
informação?
DONO DO BAR: Informação e banheiro é só pra cliente.
BURTON: Qual é, Wang? Até informação você tá cobrando
agora?
RICARDO (FALANDO COM O HOMEM DE BONÉ): Pode deixar. Vamos
fazer o jogo dele. (BATE A MÃO NO BALCÃO) Me vê aí uma dose da sua melhor
cachaça.
DONO DO BAR (SERVE RICARDO)
RICARDO (VIRA A BEBIDA EM UM ÚNICO GOLE E DEPOIS JOGA UMA
NOTA DE DOIS REAIS NO BALCÃO) Pronto, agora desembucha. Pra que lado fica a
cachoeira?
DONO DO BAR (SAINDO DE TRÁS DO BALCÃO): Vêm comigo.
(CONDUZ RICARDO E GUEDES ATÉ A PORTA DO BOTECO). Cachoeira? (ACENA COM A CABEÇA
EM DIREÇÃO AO CAMINHO) É por ali. (CÂMERA MOSTRA O CAMINHO. TRATA-SE DE UMA
ESTRADA EMPOEIRADA, SOTURNA E MAL SINALIZADA) Têm certeza de que querem mesmo
ir? Dizem que algumas pessoas sumiram lá nos últimos dias.
GUEDES (ASSUSTADO, OLHA PARA RICARDO): Porra, cara. Que
coisa estranha.
RICARDO (RINDO IRONICAMENTE): Qual é, Guedes. Não vê que
esse cara quer te assustar? (OLHA PARA O DONO DO BAR): Isso nem deve ser
verdade e, se for, é só algum retardado perdido no meio do mato.
DONO DO BAR: Tudo bem. Vocês decidem. De todo jeito, boa
sorte pra vocês.
GUEDES (APONTANDO PARA UMA DAS CASAS NOBRES DA CIDADE.
TRATA-SE NA VERDADE DE UMA MANSÃO): Por falar em sorte, de quem é essa casa?
Gostaria de morar numa dessas.
DONO DO BAR: É da família Rezende. São muito ricos, mas
infelizes.
GUEDES: Fala sério, como é que alguém pode ser rico e
infeliz? Que tristeza pode resistir a uma casa dessas, a um carrão igual aquele
ali na garagem, a uma conta no banco cheia de dólares?
DONO DO BAR: Um filho doente. Chama-se Otávio. Ele tem uma
doença degenerativa. Dizem que o rapaz
fica trancado em um dos quartos da casa, mas tem algo estranho. Ninguém é visto
há dias e de noite alguns vizinhos comentam que ouvem gritos.
RICARDO (DÁ UMA RISADA DE DEBOCHE): Gente sumida, gritos
de noite. Você sempre conta essa mesma historinha pra todos, né?
DONO DO BAR: Vocês pagaram por estas informações. Podem
acreditar nelas ou não.
RICARDO (BALANÇA A CABEÇA NEGATIVAMENTE PARA O DONO DO
BAR).
RICARDO E GUEDES (SAEM DO BOTECO E ENTRAM NO CARRO QUE
ESTÁ PARADO NA PORTA. DEPOIS ARRANCAM RUMO À ESTRADA SOMBRIA).
SEQÜÊNCIA 13 – ESTRADA PARA A CACHOEIRA – EXTERNA – DIA
O carro de Cabeça e Edu está quase chegando. Ao observarem
um chalé no alto de uma elevação, eles param para checar:
CABEÇA (SAI DO CARRO): Nossa, que merda é essa? Um chalé
assim no meio do nada?
EDU (JÁ FORA DO CARRO): Pois é, cara. Esse chalé é muito
interessante. Dizem que é abandonado, mas nunca ninguém teve coragem de ir lá
pra conferir.
CABEÇA (RINDO) Será que é mal assombrado?
CABEÇA (RINDO) Será que é mal assombrado?
EDU: Acho que a gente tá bem grandinho pra acreditar em
assombração, não é mesmo?
CABEÇA (RINDO) Com certeza.
Os dois retornam ao carro e dão partida rumo ao camping.
SEQÜÊNCIA 14 – CAMPING – EXTERNA – DIA
Serginho já está no camping. Sem camisa e de bermuda, ele
está preparando um churrasco. Atrás dele, está uma moderna barraca de
acampamento devidamente montada. De repente, chega uma caminhonete, dela descem
Edu e Cabeça. Surpreso, Serginho vai recebê-los.
SERGINHO (FALANDO PARA CABEÇA): Porra, Negão. Que máquina,
hein? Tá mesmo bem de vida.
CABEÇA (RINDO): Quem me dera. É do meu padrasto.
EDU: Tô sentindo cheirinho de churrasco. É impressão minha
ou tô errado?
SERGINHO: Tá errado, não. Eu aproveitei que vocês ainda
não tinham chegado e comecei a fazer um churrasquinho daqueles. Tá uma delícia,
provem (SERGINHO TIRA UM ESPETO DA CHURRASQUEIRA COM VÁRIOS PEDAÇOS DE UMA
SUCULENTA LINGÜIÇA).
CABEÇA E EDU (PEGAM E DELICIAM-SE COM A CARNE DE PRIMEIRA
FEITA POR SERGINHO)
EDU: Essa linguicinha tá demais. É por isso que eu não
deixava você faltar nenhum daqueles churrasquinhos que a gente fazia lá em
casa, lembra?
SERGINHO: Lembro. Eram ótimos tempos, velho. A gente se
divertia muito.
EDU (RINDO): E a mulherada? A gente não era fácil. Não
sobrava uma pra contar história.
SERGINHO (GARGALHANDO) Por falar nisso, você lembra
daquela vez que a gente veio aqui? Você ficou com aquela menina ruiva dentro da
minha barraca. Eu querendo dormir e você lá pegando a menina... Depois deixou a
barraca toda emporcalhada e eu acabei dormindo no sereno.
EDU: Porra, cara. Nem me lembra isso. Aquele dia foi do
caralho.
CABEÇA (ALHEIO À CONVERSA DE EDU E SERGINHO, CABEÇA
OBSERVA O LOCAL EM TODOS OS SEUS DETALHES. CONTEMPLA A BELEZA DA CACHOEIRA E A
OPULÊNCIA DA MATA FECHADA CONTÍGUA. QUANDO PASSA OS OLHOS PELO CAMPING,
CONSTATA ALGO ERRADO. O LOCAL ESTÁ MAL CUIDADO, COM GRAMA ALTA E SUJEIRA
ESPALHADA EM ALGUNS PONTOS. O QUISOQUE ESTÁ DEPREDRADO E MAL CONSERVADO.
SURPRESO, ELE COMENTA COM OS COLEGAS): Galera, tem algo errado aqui. Não era
pra esse lugar estar bem cuidado? Eu nunca vim aqui antes, mas o Edu disse que
essa área era verde e limpa.
EDU (OLHANDO O LOCAL) É mesmo. Você tem razão, Cabeça. Das
vezes que vim aqui, não era assim. O que houve?
SERGINHO: É, eu também achei estranho quando cheguei. O
pessoal do quiosque disse que uns caras vieram aqui ontem e emporcalharam tudo.
Mas o importante é que estamos em um lugar lindo, cheio de belezas naturais e
garotas ótimas.
CABEÇA: Garotas ótimas? Onde?
SERGINHO: Calma, rapá. Elas estão naquelas barracas lá do
outro lado. São três meninas e dois caras. E, deixa eu falar, esses camaradas
são tudo vinagrete, sacaram? Ou seja, elas estão disponíveis, é só chegar e
levar.
EDU: E como você sabe?
SERGINHO: Porra, Edu. Até parece que não me conhece. Eu já
fui lá trocar uma idéia, sacar quem tá de boa.
CABEÇA (RINDO) Serginho, você não é fácil.
SERGINHO: É isso aí, velho. Quem não chora não mama.
EDU: Galera, o sol rachando e a gente ainda aqui?
CABEÇA (TIRA A CAMISA): Demorô. Essa cachoeira tá chamando
a gente.
Os três correm felizes e satisfeitos na direção da queda
d’água.
SEQÜÊNCIA 15 – CACHOEIRA – EXTERNA – DIA
Trata-se de uma linda queda d’água. O ambiente, limpo e
refrescante, transmite uma aura renovadora. No nível do solo, as pedras que
envolvem a cachoeira formam uma pequena piscina, represando a água e permitindo
aos visitantes pequenos mergulhos. Edu, Cabeça e Serginho estão se banhando e,
alternadamente, brincando de “dar caldo”.
CABEÇA: Que delícia, brother.
EDU: Nossa. Isso aqui só não é melhor do que mulher.
SERGINHO (RINDO): Edu, tenho lá minhas dúvidas. Cachoeira
não fica com dor de cabeça e nem estoura o cartão de crédito.
Os três riem da piada.
EDU (OLHANDO A ESTRADA): Ih, olha lá quem tá vindo.
Nesse instante chegam Guedes e Ricardo. Os dois estão
sorridentes e cumprimentam os colegas.
GUEDES (CUMPRIMENTADO OS COLEGAS): Fala, rapaziada. Como
estão as coisas?
RICARDO (TAMBÉM CUMPRIMENTANDO): Oh, gente boa. Como vocês
tão?
EDU: Porra, vocês demoraram pra caralho. Achamos que
tinham perdido o caminho.
RICARDO: Foi quase isso. Quando a gente chegou na cidade,
bateu a maior dúvida. Aí ficamos rodando de carro um tempão até conseguir
alguém pra pedir informação.
GUEDES: Esse povo daqui é muito desconfiado. Ninguém
queria falar com a gente.
RICARDO: Até irmos naquele lugar
CABEÇA: Que lugar?
GUEDES: Um botequim cheio de pé inchado. Vocês acreditam
que o dono cobrou uma grana pela informação?
EDU: Como assim “cobrou”?
RICARDO: Obrigou a gente a consumir alguma coisa. Só assim
ele liberou a informação.
GUEDES (RINDO): Alguma coisa, não. Foi um copão de cachaça
que você secou com um gole só.
SERGINHO (RINDO): Quê isso, Ricky. Então você já tá no
grau?
RICARDO: Mas o pior de tudo não foi nem a cachaça, mas o
papo furado do camarada. Diz ele, vê só que viagem, que algumas pessoas
desapareceram nessa área nos últimos dias.
CABEÇA: Mas ele tava brincando com vocês.
RICARDO: Com certeza, mas não parou por aí não. Ele disse
também que aqui tem uma família cheia da nota com um filho doente. Aí, esse
filho doente fica trancado em um quarto. Mas ninguém é visto por lá há dias. E,
pra piorar, o cara ainda falou que os vizinhos ouvem gritos lá de noite.
GUEDES (RINDO): Ou seja, uma verdadeira lenda urbana. Que
dizer, nesse caso, lenda rural.
SERGINHO: Mas nem tudo nessa história é mentira.
RICARDO: Como assim?
SERGINHO: Bem, eu tava conversando com pessoal daquelas
barracas ali do lado e eles me disseram que algumas pessoas realmente estão
desaparecidas. É um grupo de adolescentes que esteve aqui antes de nós. Ninguém
tá levando essa história a sério, é claro. Deve ser alguma brincadeira de mau
gosto ou coisa do tipo.
CABEÇA: Foram esses adolescentes que espalharam aquela
sujeira toda no camping?
SERGINHO: Bom, ninguém viu essa turma sujando o camping.
Mas tudo estava limpinho antes deles chegarem. Logo, a gente acaba ligando uma
coisa à outra.
RICARDO: E essa história da família rica com filho doente?
Também é verdade?
SERGINHO: Em parte. A família Rezende é realmente muito
rica. Eles mexem com agronegócios e têm um patrimônio de perder de vista. Mas
tem esse filho doente, o Otávio. Pelo que dizem, ele tem uma doença
degenerativa muito rara e que avança rápido. Já tentaram diversos tipos de
testes e tratamentos, mas nada deu certo. Agora a família decidiu deixar o
Otávio trancado em um quarto da casa. Claro, tem uma equipe médica cuidando
dele regularmente. Quanto a essa parte da história que ninguém é visto mais na
casa, que pessoas ouvem gritos de noite, aí sim, é pura fantasia.
EDU: E o pessoal daquelas barracas ali, onde eles estão?
SERGINHO: Olha, eles me falaram que iam explorar a mata.
Devem estar fazendo uma pequena expedição.
GUEDES: Mas essa mata é segura? Me dá medo só de olhar.
SERGINHO: Esse é o Guedes, cagão como sempre. (TOM) Não
tem perigo. A mata é segura. (TOM) Pelo menos até onde é permitido circular.
GUEDES: E por quê? Tem alguma área com entrada proibida na
mata?
SERGINHO: Sim. Por ser área de preservação ambiental. De
vez em quando vêm umas ambientalistas gostosinhas aqui. Vocês têm que ver.
RICARDO: E quem controla o fluxo de pessoas?
SERGINHO: Tem uns policiais florestais e uns agentes do
IBAMA.
EDU: Serginho, só mais uma coisa...
SERGINHO (EM TOM DE PIADA): Tá bem, Edu. Só mais uma. Porra,
eu sou guia turístico, mas hoje eu tô de folga.
EDU: Beleza, é sobre esses desaparecidos. Você tem algum
palpite sobre onde eles possam estar?
SERGINHO: Tenho. Sabe aquele chalé abandonado que tem aqui
perto? Minha intuição diz que eles foram pra lá.
RICARDO: Bem, galera. O papo tá bom, mas acho melhor
montar nossas barracas antes de anoitecer.
SERGINHO: Então, vamo lá. Quem terminar primeiro vai
faturar uma asinha de frango no ponto.
SEQÜÊNCIA 16 – CAMPING – EXTERNA - DIA
Entra clipe de imagens dos cinco montando as barracas e
comendo tiras de carne. As cenas devem ser leves e descontraídas, de acordo com
o clima de tranqüilidade que impera no ambiente.
SEQÜÊNCIA 17 – ANOITECER – EXTERNA – NOITE
Takes do céu escurecendo. É uma noite estrelada e com lua
cheia. O vento balança as copas das árvores e os arbustos. Um ar meio sombrio
toma conta da atmosfera.
SEQÜÊNCIA 18 – CAMPING – EXTERNA – NOITE
Os cinco amigos estão sentados em torno de uma fogueira.
Guedes está fumando um cigarro, Ricardo se encontra apoiado sobre os joelhos,
Edu e Cabeça estão com latinhas de cerveja nas mãos e Serginho dedilha um
violão.
EDU (DÁ UM LONGO GOLE NA LATINHA E DEPOIS FALA):
Engraçado, eu tava lembrando agora quando a gente se conheceu. Meus pais se
separaram e eu fui morar com a minha mãe. Me mudei lá pro bairro sem conhecer
ninguém. Aí fiz amizade com o Cabeça, depois com o Guedes, depois com o Ricardo
e por fim com o Serginho. Tem muito tempo, né?
CABEÇA (DÁ UM GOLE NA CERVEJA ANTES DE FALAR): Porra, eu
lembro como se fosse ontem quando te conheci. Você participou de uma pelada do
pessoal lá da rua. (RINDO) Jogava muito mal, mas pelo menos era gente boa.
(TOM) É, mas antes de mudar lá pro bairro, minha vida era um inferno. Morando
no subúrbio, só me meti em errada. Trabalhei pruns traficantes, (TOM) caras
maus. Depois comecei a me envolver com assaltos, a andar com gangues. Eu lembro
que em um dos meus aniversários eles me deram um revólver. Que loucura. Ainda bem que minha mãe vendeu o
que tinha e o que não tinha pra me tirar de lá. Eu devo tudo que sou a
ela.
GUEDES (DÁ UMA BAFORADA NO CIGARRO): Eu lembro quando eu
roubava o carro do meu pai. A gente marcava sempre na esquina. Depois rodava
pra tudo quanto é canto.
RICARDO: Guedes, não tem como esquecer. Você quase matou a
gente umas três vezes.
GUEDES: É você, Ricardo? Tirava onda com a nossa cara só
porque era mais velho e podia alugar filme de sacanagem.
SERGINHO (RINDO): E vejam no que deu. O cara virou
cineasta. Agora, Ricardo, cá entre nós, esse negócio de estudar cinema era só
pra fazer filme de putaria mais pra frente, né?
RICARDO (RINDO): Por que não? (DÁ UM BREVE SUSPIRO) Ah,
falando sério, quando eu fiz essa merda de curso eu pensava em documentar temas
bacanas, defender certos pontos de vista através da arte. Enfim, dizer e
mostrar coisas. Que ironia. O máximo que consegui foi dirigir um filme sobre
uma lagosta alienígena perdida na Terra.
SERGINHO: E você, Guedes? Novinho e já gerente de
concessionária.
GUEDES (DÁ UMA TRAGADA NO CIGARRO E DEPOIS SORRI): Mas não
foi fácil. Tive que tirar muita gente do caminho pra chegar lá. É preciso ser
forte pra sobreviver nesse mundo dos negócios
RICARDO: Porra, Guedes. Vale tudo pra vencer na vida? Você
não fica com peso na consciência?
GUEDES: Não sei. Eu sei é que, se você ficar de frescura,
não chega a lugar nenhum.
Um ruído vindo da mata desperta a atenção de todos e
interrompe a conversa do quinteto. Clima de suspense. Todos têm a sensação de
estarem sendo observados por alguma coisa. Entre arbustos e árvores, o movimento
de um vulto com par de olhos avermelhados é percebido por Cabeça.
CABEÇA (MUITO ASSUSTADO): Caralho, vocês viram aquilo?
Eram olhos vermelhos se mexendo entre as folhas.
SERGINHO: Porra, Cabeça. Você se assusta com qualquer
coisa, hein? É só um desses animais que vivem na mata.
RICARDO (APLICA UM LEVE TAPA NA CABEÇA DE CABEÇA): Já deve
tá doidão de cana, né?
EDU: Por falar nisso, minha cerveja acabou. Tem mais aí?
SERGINHO: Lá no quiosque com certeza tem.
SEQÜÊNCIA 19 – QUIOSQUE – INTERNA - NOITE
Edu se dirige ao quiosque vagarosamente. No caminho,
percebe a grama alta, a sujeira pelo chão, alguns buracos. É como se o lugar
estivesse abandonado. Um vento fraco e uivante surge e passa por Edu causando
arrepio no jovem. A cena é dominada por um forte clima de suspense. Ao avistar
o quiosque, Edu percebe que a instalação está depredada e sem cuidados. O lugar
tem um balcão e algumas cadeiras e mesas espalhadas desordenadamente. Há,
cobrindo a construção, um toldo feito com folhas de palha. Atrás do balcão,
prateleiras cobertas de folhas de bananeira com garrafas dos mais diversos
tipos de bebidas, alcoólicas e não alcoólicas. Em um dos cantos, pode-se notar
um freezer vertical com garrafas de cerveja e de refrigerantes. Outro detalhe
que não passa despercebido por Edu é uma espingarda pendurada em um espaço
entre as prateleiras. Há uma luz acessa, mas o silêncio transmite a impressão
de que não há ninguém no local. Ao se aproximar, Edu percebe que duas pessoas
estão no balcão, um homem e uma mulher. Mas as pessoas estão completamente
paralisadas. Edu chega ao balcão e se dirige ao homem que lá está. O sujeito
apresenta uma fisionomia fechada e glacial. As roupas estão ligeiramente
amarrotadas e encardidas. A barba está por fazer e os cabelos totalmente desordenados.
No braço do homem, está um curativo feito de forma improvisada. Há uma mancha
de sangue na gaze.
EDU (MEIO ASSUSTADO): Por favor, o senhor poderia me
arrumar três cervejas?
HOMEM (OLHA FIXAMENTE PARA EDU POR ALGUM TEMPO, DEPOIS
LENTAMENTE SE DIRIGE AO FREEZER PARA PEGAR AS CERVEJAS).
EDU (QUANDO O HOMEM SE VIRA PARA PEGAR AS CERVEJAS, OLHA
ATENTAMENTE PARA O CURATIVO ENSANGUENTADO).
HOMEM (RETORNA COM AS TRÊS LATAS DE CERVEJA NA MÃO.
DEPOIS, AS PÕE EM CIMA DO BALCÃO E OLHA PARA EDU PROFUNDAMENTE).
EDU (MUITO ASSUSTADO, SE ATRAPALHA UM POUCO PARA PEGAR O
DINHEIRO NO BOLSO DA BERMUDA. DEPOIS QUE CONSEGUE PEGAR, ENTREGA UMA NOTA DE
CINCO REAIS NA MÃO DO HOMEM).
HOMEM (OLHA POR MAIS UM TEMPO PARA EDU, DEPOIS SE VIRA E
VAI PARA OS FUNDOS DO QUIOSQUE, DEIXANDO A CENA).
MULHER (TOTALMENTE IMÓVEL E QUIETA ATÉ AQUI, ELA SE VOLTA
PARA EDU. TRATA-SE DE UMA SENHORA DE MEIA-IDADE. ESTÁ VESTIDA COM SIMPLICIDADE
E PARECE EXAUSTA): Filho, não se assuste com o meu marido. Coitado, hoje ele
teve um dia muito difícil.
EDU (CURIOSO, MAS AINDA UM POUCO ASSUSTADO): Como assim
“difícil”?
MULHER: Ele se envolveu em uma briga com um cliente. É por
isso que está com aquele ferimento no braço.
EDU: O que aconteceu? O cara não queria pagar a conta?
MULHER: Não. Era um cliente antigo aqui do quiosque. Nunca
tinha criado problema. Mas, hoje, ele apareceu de manhã e, sem motivo nenhum,
já foi atacando meu marido. Chamamos a polícia e ele acabou preso.
EDU: Esse cara tava bêbado ou coisa assim?
MULHER: Não sei, filho. Mas eu nunca tinha visto nada
parecido.
EDU (PEGA AS CERVEJAS): Eu sinto muito pelo que houve. Mas
se a senhora e seu marido precisarem de algo, é só nos chamar ali nas barracas.
SEQÜÊNCIA 20 – CAMPING – EXTERNA - NOITE
Os quatro amigos continuam em torno da fogueira. Serginho
está dedilhando o violão e cantarolando uma música do Zé Ramalho. Cabeça bebe
uma cerveja e Guedes fuma. Ricardo folheia um livro e força a vista para
enxergar melhor.
CABEÇA: Serginho,
esse pessoal das barracas aí do lado. Já não era pra eles terem voltado não?
SERGINHO: Cara, cê tá certo. Eles já deviam ter voltado.
Ou pelo menos dado notícia. (LEVANTA-SE E LARGA O VIOLÃO) Volto atrás deles.
EDU (ENTRA EM CENA COM AS LATAS CERVEJAS): Qual é,
Serginho? Já tá indo?
SERGINHO: Não. Só vou aí na mata pra procurar o resto do
pessoal. Eles podem ter se perdido.
GUEDES: Pô, Serginho. Você não disse que a mata era
segura?
SERGINHO: E é. Mas está de noite e o grupo deles tem três
mulheres. Nessas condições, as coisas podem se complicar.
RICARDO: Você acha que pode ter acontecido alguma coisa
grave?
SERGINHO: Eu espero que não
CABEÇA: Serginho, eu vou junto.
GUEDES (COM MEDO): Oh, galera. Se vocês quiserem ir, por
mim tá ótimo. Não tem problema. Eu fico aqui tomando conta das barracas.
SEQÜÊNCIA 21 – MATA DE CHÁCARA – EXTERNA – NOITE
A mata está escura. Árvores, arbustos, galhos e flores
formam entre si um lugar fechado e ermo. O enquadramento da cena começa com um
mergulho vertical pela mata. Depois, segue por um pequeno corredor entre a
vegetação. Por ele, a câmera vai atravessando o cenário até chegar à entrada do
local. De lá, enquadra o grupo de amigos discutindo. Ela vai se aproximando dos
seis lentamente até a cena ser cortada abruptamente.
Sobem créditos
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